Ansiedade e baixa autoestima são fatores que podem levar ao vício
O consumo excessivo de álcool, presente no diagnóstico de centenas de problemas de saúde, está relacionado (direta ou indiretamente) há mais de 300 mil mortes anuais nas Américas. No mundo, a substância tem participação no registro de 3 milhões de óbitos por ano. Entre as enfermidades diretamente ligadas ao abuso de bebidas alcoólicas estão as doenças hepáticas, cardiovasculares, cânceres e tuberculose. A psicóloga do Núcleo de Apoio à Atenção Básica de Santo Augusto (NAAB), Aline de Siqueira Mendonça, que atende pacientes vítimas do álcool no município, pontua a ansiedade, a baixa autoestima e traços de personalidade (como impulsividade e busca de sensações) como possíveis gatilhos desencadeadores do alcoolismo.
Segundo dados de 2018, da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas),64% das mortes relacionadas ao álcool ocorrem em pessoas com 60 anos ou mais. Uma pesquisa da organização, realizada após o surgimento da Covid-19, aponta que 74% dos entrevistados beberam durante a pandemia e 42% exageraram no consumo em algumas situações. De acordo com Quirino Cordeiro, secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, “Os quadros de ansiedade aumentam em mais de 70% as chances de que as pessoas bebam de forma mais pesada, e muito poucos buscam ajuda”. Além das possíveis consequências diretas do consumo abusivo de álcool, o uso indiscriminado da substância também contribui com o aumento de casos de violência familiar e em grupos sociais, acidentes rodoviários, HIV/AIDS, entre outros problemas.
Reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1976, a dependência do álcool é uma doença crônica, recorrente e que, se não tratada, pode ser fatal. Há cerca de 30 anos, o órgão alerta a população mundial sobre os diferentes perfis de consumidores de bebidas alcoólicas, desde aqueles que ingerem quantidades com baixíssimo efeito tóxico ao organismo, até os indivíduos que fazem uso problemático ou abusivo, com impacto próximo daquele causado pela dependência. Pesquisadores e diversos profissionais da área da saúde vem buscando mudar o senso comum de que a bebida alcoólica é um produto qualquer, semelhante a outros alimentos.
Papel da psicologia
A psicóloga Aline destaca que, como o alcoolismo é uma doença multifatorial, ou seja, influenciada por diversos fatores genéticos, sociais e ambientais, o resultado é um complexo quadro de uma doença crônica. A influência de condições psicológicas particulares, já mencionadas, exercem forte influência na adesão dos consumidores aos produtos alcoólicos. “Entendendo que muitas vezes o álcool é usado como uma alternativa para resolver ou amenizar estes fatores, a prevenção ao alcoolismo ocorre no tratamento adequado e precoce a estes sinais psicológicos, que podem desencadear em um comportamento prejudicial”, frisa a psicóloga, que também enfatiza a importância do profissional na conscientização dos pacientes sobre a adoção de um estilo de vida saudável, com prática regular de atividade física, boa alimentação e sono adequado.
Segundo Aline, a partir do momento em que o paciente é diagnosticado como vítima de alcoolismo em Santo Augusto, o protocolo adotado pela Secretaria de Saúde consiste na realização de uma avaliação médica e psicológica para a escolha do tratamento adequado — que pode variar desde um tratamento ambulatorial, com acompanhamento psicológico semanal ou quinzenal aliado à administração de medicamentos específicos, até a internação em leitos de hospitais da Coordenadoria Regional de Saúde — com o desenvolvimento de ações também em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou comunidades terapêuticas.
Fatores de risco
As complicações diversas do consumo indiscriminado da substância estão relacionadas à vulnerabilidade genética do paciente e às condições do ambiente em que este está inserido. Apesar de não existirem dados que informem quantas pessoas começam a ingerir álcool a cada ano, sabe-se que os jovens estão começando a beber cada vez mais cedo, o que preocupa muito os especialistas. Conforme relatório da OMS, divulgado em 2016, o álcool é a principal causa de morte em brasileiros entre 15 e 19 anos, seja em decorrência de acidentes de trânsito ou paradas cardíacas. Um levantamento feito no mesmo ano, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou um crescimento constante no consumo alcoólico por adolescentes da mesma faixa etária. Conforme a pesquisa, divulgada em agosto de 2016, mais da metade dos alunos do 9º ano do Ensino Fundamental já experimentaram bebidas alcoólicas ao menos uma vez. Na época, o número era equivalente a cerca de 1,5 milhão de jovens entre 13 e 14 anos.
Existe um documento, disponibilizado pela Associação Médica Brasileira (AMB), que tem por objetivo auxiliar os médicos a conciliar informações relativas à doença e facilitar a tomada de decisão correta. Este documento, parte integrante do Projeto Diretrizes, é intitulado “Abuso e Dependência de Álcool”. O artigo esclarece diversos pontos acerca do tema, entre eles os motivos que levam os jovens ingressarem no mundo do alcoolismo, a ponte entre álcool e outras substâncias psicoativas e os métodos de abordagem e diagnóstico médico.
Alguns dados e reflexões merecem um destaque especial. Conforme o documento, “os principais fatores de risco que colaboram para o início de consumo do álcool em jovens são a curiosidade, a pressão do grupo social, o modelo familiar, a propaganda e a falta de políticas públicas”. A curiosidade típica do adolescente é pautada como o motivo que mais tem impacto na experimentação do álcool, no padrão de consumo e nas consequências de seu abuso para a saúde humana, seguida pela influência social permissiva das sociedades em que as bebidas alcoólicas são naturalizadas, como o Brasil. Em relação à ausência de apoio governamental e aos problemas na organização familiar, a AMB enfatiza alguns tópicos que podem levar à ingestão alcoólica descontrolada.
Suporte familiar
Se por um lado, o histórico de consumo alcoólico nas famílias, além de outras adversidades no ambiente domiciliar, contribui para o aparecimento e agravamento de um quadro alcoolista, por outro, a família pode ser de fundamental importância no processo de identificação da doença, procura por orientação profissional e suporte no tratamento.
Aline afirma que, na maioria das vezes, a identificação do abuso da substância é percebida, primeiramente, pela família. “A família tem um papel crucial no tratamento dos pacientes com quadros de dependência. Ela é vista como passível de induzir riscos (famílias desorganizadas, divórcios, conflitos familiares, histórico de uso de drogas na família), mas também pode agir como um sistema encorajador e protetor (formação de hábitos saudáveis e suporte emocional)”, destaca a psicóloga.
Desafios sociais
De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro do Fígado (IBRAFIG), mais da metade da população brasileira (55%), têm o costume de consumir uma “cervejinha” ou outra bebida alcoólica após o fim do expediente nas sextas-feiras. Ainda conforme o estudo, 17,2% declararam aumento do consumo durante a pandemia da Covid-19, condição relacionada a quadros de ansiedade severos em decorrência das medidas de distanciamento social.
O dia 18 de fevereiro (última sexta-feira) é data símbolo do combate ao alcoolismo no Brasil. Tal dia está marcado no calendário nacional para alertar a população brasileira sobre os perigos do alcoolismo, muitas vezes menosprezados pela sociedade, que, de certo modo, já naturalizou o consumo da substância. O levantamento do IBRAFIG ainda pontua que um terço dos brasileiros consomem alguma quantia de álcool ao menos uma vez na semana. Já o uso abusivo foi relatado, voluntariamente, por 18,8% dos 1,9 mil entrevistados, nas cinco regiões do país. Em relação à quantidade consumida, a pesquisa concluiu que os brasileiros consomem cerca de três doses por ocasião, o que representa 450 ml de vinho ou três latas de cerveja.
Esta naturalização do consumo de álcool, que por vezes sequer chega a ser encarado socialmente como uma droga, em muitos casos é o estopim para desencadear a doença. O hábito de ingerir bebidas alcoólicas em eventos sociais é uma tradição bem antiga no Brasil, o que também agrava a situação. Desta forma, o aspecto cultural dificulta ações de combate aos malefícios da doença, que não é encarada com a devida seriedade.
A luta contra os males do alcoolismo deve ser um compromisso de todos os cidadãos na busca por uma sociedade mais saudável, por isso a comunidade médica alerta sobre a importância de as pessoas enxergarem o consumo abusivo com outros olhos, procurar ajuda quando sentir que não possuem mais autocontrole e, também, ajudar outros indivíduos que sofrem com o problema e não percebem.