Cicatrizes que não se veem: A história de uma mulher que quebrou o ciclo da violência

A frase de impacto dita por Maria (nome fictício para preservar a sua identidade) revela o ápice de uma vida cercada por violência. Momentos de agressões, físicas, psicológicas, vivenciados dentro do ambiente familiar que deveria ser de proteção, amor e acolhimento, assumindo uma face capaz de provocar cicatrizes físicas, psicológicas, na alma. No Brasil, a cada dois minutos, uma mulher é vítima de violência doméstica. Um mal que se espalha como um fantasma silencioso e deixa cicatrizes profundas para além do físico. Apesar das campanhas de conscientização, dos números crescentes de medidas protetivas e das histórias que ganham espaço nas manchetes, ainda há quem acredite que casos assim sejam problema exclusivo das grandes cidades. Mas a verdade é que eles acontecem em qualquer lugar, com vizinhas, amigas, colegas… com Marias e Anas que vivem ao lado de seus agressores.
Maria, moradora de Santo Augusto, relata uma trajetória marcada por um destino cruel, quase como se a violência fosse uma herança amarga. “Eu cresci num ambiente onde a minha mãe sofreu violência doméstica e tortura psicológica. Era um lar disfuncional e traumatizante”, começa. Na tentativa de fugir desse cenário, acabou vivendo outro pesadelo. “Quis o destino que, fugindo da violência que via minha mãe sofrer, eu me casasse com um monstro pior que meu pai”, coloca.
O casamento durou 15 longos anos, com “direito” a agressões físicas, pressão psicológica e humilhações constantes.

Ele me dizia que eu não prestava para nada, que não servia para arrumar um emprego, que eu simplesmente não era ninguém. Por muito tempo eu acreditei nisso. Me achava uma inútil, achava que minha função era apenas cuidar da casa, dos filhos e servir ao marido”, recorda.

Da relação restaram três filhos, marcas pelo corpo e pela alma. Um corte profundo na cabeça, fechado com mais de dez pontos, resultado de um prato arremessado contra ela; cicatrizes nas mãos, causadas por facas e queimaduras. Mas, segundo ela, as feridas mais dolorosas não são essas. “O que mais dói são as marcas deixadas na minha alma”, pondera.
O ciclo era sempre o mesmo: agressões seguidas de arrependimento e promessas de mudança. “Ele dizia que estava arrependido, que não ia mais fazer aquilo, mas não demorava muito e vivíamos tudo de novo, às vezes até pior”, lembra.
A virada veio no dia em que a violência chegou a um ponto de quase tirar sua vida. “Ele me pegou pelo pescoço, me jogou contra a parede e começou a me bater até não ter mais forças. Eu sangrava, olhei para os meus filhos e vi a mais velha pedindo para o pai parar. Foi ali que eu prometi para eles: vocês nunca mais vão ver isso. Naquele dia eu pensei que ele iria me matar”, recorda.
Maria conseguiu sair de casa com os três filhos, mesmo sem ter para onde ir. “Foi bem difícil. Eu pensava que não ia conseguir, minha autoestima estava no chão. Mas a gente consegue. E foi a melhor coisa da minha vida”, comemora.
Contudo, a separação não encerrou o pesadelo. “Vivi mais de um ano sendo perseguida. Ele ficava na esquina, na porta do meu trabalho, na minha rua. Sempre me ameaçava, dizia que se eu não fosse dele, não seria de mais ninguém”, coloca. Porém, o medo maior era pelos filhos. “Saía para trabalhar, mas meu coração ficava em casa, com medo de ele fazer algum mal para eles”, acrescenta.
O impacto da violência sobre as crianças foi profundo. “Até hoje meus filhos têm trauma de quem fala alto. O do meio chegou a ficar sem falar por um tempo. O bebê acordava chorando todas as noites. Levei todos à psicóloga. O trauma não some, mas hoje eles sabem lidar melhor com o passado”, comemora.
A decisão de romper com o agressor trouxe também um renascimento pessoal. “Hoje eu sou livre, estudo, trabalho, sou independente. Não aceito que homem nenhum levante a voz para mim. Sei do meu valor”, analisa.

Para outras mulheres, Maria deixa um recado urgente. “Procurem ajuda. Uma palavra de baixo calão hoje, amanhã é um grito, depois um empurrão… até que alguém morra ou acabe em uma cama de hospital. Nenhuma mulher deve permitir que um homem faça isso”, alerta.

Ela reconhece que o caminho da superação é difícil, mas possível. “Eu me levantei e decidi que não queria mais aquela vida. Tenho orgulho de mim. E quero que outras mulheres saibam que também podem sair disso”, finalizou.

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