Ao Davi, com carinho

Soraia Hanna - soraia@criterio.com.br

O ano era 1961. De Beirute a Santos, foram 26 dias de viagem. Foi assim que meu pai, palestino de Ramallah, começou sua jornada na terra que aprendeu a amar. Ele se chamava Dawud — na tradução, Davi, nome recorrente entre judeus, cristãos e muçulmanos.
Lembro quando sentava ao seu lado na porta de nossa loja e ouvia suas histórias. Mais do que sobre a Terra Santa, ele falava das pessoas. Das vezes que ele, um cristão, ia para a mesquita
com seus amigos. De dona Ruth, amiga judia que visitava a casa da família em Ramallah. Memória que me remete a algo que nutro e quero repassar aos meus filhos: tolerância, respeito e humanidade.
Logo, analisar um processo complexo como o da Palestina é passível de erros e interpretações equivocadas. Por outro lado, é tão claro classificar o que ocorreu no fim de semana: um ato terrorista contra inocentes, uma barbárie que deve ser repudiada sem contemporizações.
Acordos foram desperdiçados, muito sangue foi derramado, perdas e ressentimentos se acumulam. E vemos Gaza com bloqueios, impondo escassez de água, luz e infraestrutura básica aos seus moradores. O direito de ir e vir estaciona nos checkpoints que cercam a Cisjordânia.
Para piorar, há uma crise de liderança, com gestores ineptos que fomentam a intransigência. Há aproveitadores que usam o conflito como cortina de fumaça. A legítima causa de um Estado soberano é encoberta por outros interesses da geopolítica global.
A quem serve ampliar o conflito e recrudescer a violência na Palestina? Vivemos um retrocesso, simplificando interpretações para gerar mais divisão. O desafio da moderação precisa ser perseguido. Não há justiça sem olhar para o futuro – que vem do amor que cura e que dá chance à paz.
Minhas preces estão com as mães dos jovens brutalmente assassinados, com as crianças sob os escombros em Gaza, com as vítimas de todos os lados que já partiram e as que virão. Rezo para que não se estigmatizem povos numa espiral de preconceito, criando pretexto para outras atrocidades.
Oro, enfim, por um “novo despertar de tudo, uma nova história da humanidade”. Por sinal, esse é o título de um recente livro escrito por dois Davids – Graeber e Wengrow. E é o mesmo que desejaria meu Davi, que deixou de legado o respeito, a tolerância e o humanismo. A ti, meu pai, nosso esforço por construir um novo capítulo dessa história.

Jornalista, especialista em reputação e sócia-diretora da Critério – Resultado em Opinião Pública.

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